Hoje é o primeiro dia.
Acordei com vozes na horta e por toda a casa elas se espalhavam, eram
duas vozes. Era uma conversa, não podia entender o que conversavam.
Demorei mais um tempo na cama, buscando uma posição confortável
para abrir os olhos e entender o que estava acontecendo fora do meu
quarto.
Levantei de supetão,
abri energicamente as janelas do meu quarto. As vozes se
distanciavam, ora calavam, ora ficavam tão próximas. Olhei para o
relógio laranja no meu pulso e tentei calcular por quanto tempo
estive dormindo. Obviamente não consegui, porque não tinha
percebido a hora em que adormeci. Sabia apenas que meu corpo estava
bem cansado.
Há alguns meses atrás
os movimentos que meu corpo estava habituado a fazer eram bem
limitados. Frequentemente os joelhos reclamavam do sobrepeso que eram
obrigados a sustentar, reclamavam até desistirem de colaborar nos
movimentos. Eu não ficava horrorizada. Sabia exatamente o que estava
acontecendo. Ainda na adolescência havia sido diagnosticada com
“condromalácea patelar”.
Ao não entender o diagnóstico, o ortopedista que me atendeu me
explicou assim:
_
Você nasceu com os joelhos tortos. Virados pra dentro.
Levei
um susto! Nunca tinha percebido isso! Ninguém havia reparado também,
ou pelo menos nunca comentaram comigo. Saí da consulta com
exatamente o que eu sempre quis ter: uma desculpa para não ser
obrigada a frequentar as aulas de educação física, recebi um
atestado médico dizendo que eu precisaria sair das aulas de “step”
e de qualquer outra modalidade física que gerasse impacto nos
joelhos. Foi quando quase entrei em pânico ao descobrir que teria
que entrar para a natação. Sempre tinha gostado de água, de nadar,
desde criança que cresci frequentando rios no interior do Tocantins.
O problema era a piscina. Estava cursando o 1º ano do Ensino Médio
em uma escola super incrível (e realmente cara), que ficava em um
shopping próximo de um dos bairros novos com o m² mais caro da
cidade. Minhas aulas de línguas estrangeiras eram no Yázigi e as de
educação física eram na Academia Julio Adnet. A piscina ficava na
vitrine do shopping, e não somente a parte de cima, mas a parte
submersa também. Eu JAMAIS iria colocar um maiô e ficar exposta em
uma vitrine de shopping seminua enquanto era obrigada a nadar para
receber nota. Preferia repetir de ano.
Voltando
aos meses passados, eu tinha conseguido engordar tanto quanto tinha
engordado em uma de minhas crises de depressão, super forte que
tinha se arrastado até 2009. Estava pesando 98kg novamente. O que
mais me irritava era ter que lidar com as dores terríveis no joelho
e fazer a fisioterapia. Na verdade eu até gostava da fisioterapia,
não gostava era de ir até lá e voltar a pé e de metrô. Certa
vez, um dos fisioterapeutas que me atendia disse que eu melhoraria
mais rápido se fizesse hidroterapia. Lá fui eu pra piscina! Depois
de adulta não me importo tanto em colocar um maiô ou mesmo um
biquini e aparecer seminua na frente de estranhos.
Percebi
que engordar era para mim uma forma de me proteger. Psicologicamente
falando, porque fisicamente, claramente eu me torno muito vulnerável.
Se estou gorda as pessoas tendem a se afastar, não sou tão
assediada, posso me isolar tranquilamente. Fico quase invisível, ou
pelo menos sou bem ignorada. Mas também notei que isso difere de
região para região. Tem lugares em que as pessoas insistem em ser
amáveis e queridas, as vezes acabam sendo melosas e grudam em
você...
Normalmente
eu engordo pela preguiça e pelo comodismo. Gosto de não ser
incomodada, de fazer só o que tenho vontade e de economizar energia
do corpo para gastar mais na mente. Sou do tipo mental. Amo jogos,
desafios, literatura, enfim, tudo o que tem a ver com ficar quieto e
se concentrar em determinada situação. Sou nerd. Uma nerd
multifuncional e desde que descobri as artes de rua, me senti uma
pessoa invencível. Porque um dos jogos que me trouxe a maior paixão
do mundo foi o RPG, um jogo de interpretação de personagens, e do
live-action que é uma modalidade em que você realmente atua, como
um ator ou atriz, só que sem decorar textos e falas. É tudo no
improviso. Seu personagem vai se moldando à situação que está
acontecendo e de acordo com as suas características pré-determinadas
vai tomando ações.
Na
vida real, fiz um curso de performer, artista de rua. Saí por aí
experimentando, desenvolvendo meu personagem, mas também a minha
pessoa. Porque na rua eu não tinha um “codinome”
eu me apresentava como eu mesma. Os blefes, se necessários para
escapar de situações perigosas eram sempre usados. Mas o que eu
mais gostei e continuo gostando é observar as reações das pessoas
quando confrontam informações reais dadas por mim. As pessoas
costumam achar várias coisas sobre isso, e muitas vezes me alertam
sobre o perigo de fornecer a verdade para “estranhos”. Tomam-me
por ingênua. Devo ser, talvez. Ou talvez eu seja o perigo. A verdade
te liberta e te libertará sempre. Eu adoro a verdade, minha religião
tem na Verdade um dos seus pilares de sustentação. Verdade, Bem e
Belo.
Um
dia, no ano passado (2015), resolvi que queria praticar tudo o que
estava aprendendo. Tinha entrado em um programa que ensina uma nova
maneira de viver a alguns anos atrás e percebia claramente que
quanto mais eu me autopesquisava e me conhecia, mais eu notava o
quanto estava bem longe da minha vida real.
A
depressão tem dessas coisas de fazer você se perder de si mesma. Aí
quando você vai melhorando demora um pouco a ter discernimento o
suficiente para entender quem se é de verdade e quem se está
tentando ser. Eu estava tentando com muita dedicação e empenho ser
alguém que eu acreditava que eu deveria ser, mas de uma forma meio
inconsciente. O autoengano era tamanho que acreditava que meus
personagens tinham sumido e que na verdade era a mim mesma que estava
começando a conhecer e a mostrar para os outros minha verdadeira
essência. Não.
Resolvi
que não tinha mais como eu continuar interpretando alguém para mim
e para os outros da minha vida, como se esse alguém fosse eu mesma
de fato. Ainda tenho muito a pesquisar dentro de mim para me conhecer
melhor, fato. Porém agora estou mais próxima de mim do que estava
no ano passado.
Defini
alguns pontos importantes no meu auto-conhecimento e no que quero
viver na minha vida. Um deles é aumentar a minha convivência com
meu pai. Quero conhecer todo o meu lado paterno, tanto meu pai,
quanto seus familiares.
Durante
minha infância morei em muitas casas diferentes, em várias cidades
e conheci muitas pessoas e estudei em várias escolas. Uma cidade
específica foi muito importante, desde os meus quatro anos de idade,
porque vivenciei muitas experiências nela e fiz amigos que tenho até
hoje. Esta cidade é bem pequena, humilde, cidadezinha simples do
interior do Tocantins, hoje com 15 mil habitantes, Taguatinga. Antes
ficava próxima de Mimoso do Oeste na Bahia, e Barreiras. Agora fica
perto de Luis Eduardo Magalhães, a cidade baiana com a maior
quantidade de gaúchos residentes. Eu sou gaúcha, filha de gaúchos
e meus parentes estão em sua maioria no estado do Rio Grande do Sul,
que é o estado onde vim morar desde março deste ano (porém em uma
cidade longe dos familiares).
Meu
pai ainda mora em Taguatinga, no Tocantins e é lá o lugar onde
quero estabelecer minhas raízes. E isso tem tudo a ver com o motivo
que me trouxe para voluntariar no projeto do Marcos Ninguém. Quero
me empoderar. Saber planejar um assentamento humano sustentável, com
todas as pétalas da permacultura integradas. Quero empoderar as
pessoas que moram lá, que elas possam buscar seu autossustento e de
suas famílias sem agredir o meio em que vivem, que possam preservar
suas riquezas naturais e melhorar sua qualidade de vida. Fomentar o
ecoturismo, o turismo rural e o de aventuras integrado a um ecohostel
que funciona também como escola viva de saberes, com uma farmácia
viva, hortas, espirais de ervas, com uma agrofloresta e bambu. Que
trabalha também como o turismo colaborativo e que incentiva toda a
população a fazer as pazes com as sabedorias ancestrais em busca de
uma saúde coletiva.
Esse é o primeiro dia.
Magnífico! amei os seus planos. beijos no coração.
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