sábado, 1 de outubro de 2016

Primeiro Dia

Hoje é o primeiro dia. Acordei com vozes na horta e por toda a casa elas se espalhavam, eram duas vozes. Era uma conversa, não podia entender o que conversavam. Demorei mais um tempo na cama, buscando uma posição confortável para abrir os olhos e entender o que estava acontecendo fora do meu quarto.
Levantei de supetão, abri energicamente as janelas do meu quarto. As vozes se distanciavam, ora calavam, ora ficavam tão próximas. Olhei para o relógio laranja no meu pulso e tentei calcular por quanto tempo estive dormindo. Obviamente não consegui, porque não tinha percebido a hora em que adormeci. Sabia apenas que meu corpo estava bem cansado.
Há alguns meses atrás os movimentos que meu corpo estava habituado a fazer eram bem limitados. Frequentemente os joelhos reclamavam do sobrepeso que eram obrigados a sustentar, reclamavam até desistirem de colaborar nos movimentos. Eu não ficava horrorizada. Sabia exatamente o que estava acontecendo. Ainda na adolescência havia sido diagnosticada com “condromalácea patelar”. Ao não entender o diagnóstico, o ortopedista que me atendeu me explicou assim:
_ Você nasceu com os joelhos tortos. Virados pra dentro.
Levei um susto! Nunca tinha percebido isso! Ninguém havia reparado também, ou pelo menos nunca comentaram comigo. Saí da consulta com exatamente o que eu sempre quis ter: uma desculpa para não ser obrigada a frequentar as aulas de educação física, recebi um atestado médico dizendo que eu precisaria sair das aulas de “step” e de qualquer outra modalidade física que gerasse impacto nos joelhos. Foi quando quase entrei em pânico ao descobrir que teria que entrar para a natação. Sempre tinha gostado de água, de nadar, desde criança que cresci frequentando rios no interior do Tocantins. O problema era a piscina. Estava cursando o 1º ano do Ensino Médio em uma escola super incrível (e realmente cara), que ficava em um shopping próximo de um dos bairros novos com o m² mais caro da cidade. Minhas aulas de línguas estrangeiras eram no Yázigi e as de educação física eram na Academia Julio Adnet. A piscina ficava na vitrine do shopping, e não somente a parte de cima, mas a parte submersa também. Eu JAMAIS iria colocar um maiô e ficar exposta em uma vitrine de shopping seminua enquanto era obrigada a nadar para receber nota. Preferia repetir de ano.
Voltando aos meses passados, eu tinha conseguido engordar tanto quanto tinha engordado em uma de minhas crises de depressão, super forte que tinha se arrastado até 2009. Estava pesando 98kg novamente. O que mais me irritava era ter que lidar com as dores terríveis no joelho e fazer a fisioterapia. Na verdade eu até gostava da fisioterapia, não gostava era de ir até lá e voltar a pé e de metrô. Certa vez, um dos fisioterapeutas que me atendia disse que eu melhoraria mais rápido se fizesse hidroterapia. Lá fui eu pra piscina! Depois de adulta não me importo tanto em colocar um maiô ou mesmo um biquini e aparecer seminua na frente de estranhos.
Percebi que engordar era para mim uma forma de me proteger. Psicologicamente falando, porque fisicamente, claramente eu me torno muito vulnerável. Se estou gorda as pessoas tendem a se afastar, não sou tão assediada, posso me isolar tranquilamente. Fico quase invisível, ou pelo menos sou bem ignorada. Mas também notei que isso difere de região para região. Tem lugares em que as pessoas insistem em ser amáveis e queridas, as vezes acabam sendo melosas e grudam em você...
Normalmente eu engordo pela preguiça e pelo comodismo. Gosto de não ser incomodada, de fazer só o que tenho vontade e de economizar energia do corpo para gastar mais na mente. Sou do tipo mental. Amo jogos, desafios, literatura, enfim, tudo o que tem a ver com ficar quieto e se concentrar em determinada situação. Sou nerd. Uma nerd multifuncional e desde que descobri as artes de rua, me senti uma pessoa invencível. Porque um dos jogos que me trouxe a maior paixão do mundo foi o RPG, um jogo de interpretação de personagens, e do live-action que é uma modalidade em que você realmente atua, como um ator ou atriz, só que sem decorar textos e falas. É tudo no improviso. Seu personagem vai se moldando à situação que está acontecendo e de acordo com as suas características pré-determinadas vai tomando ações.
Na vida real, fiz um curso de performer, artista de rua. Saí por aí experimentando, desenvolvendo meu personagem, mas também a minha pessoa. Porque na rua eu não tinha um “codinome” eu me apresentava como eu mesma. Os blefes, se necessários para escapar de situações perigosas eram sempre usados. Mas o que eu mais gostei e continuo gostando é observar as reações das pessoas quando confrontam informações reais dadas por mim. As pessoas costumam achar várias coisas sobre isso, e muitas vezes me alertam sobre o perigo de fornecer a verdade para “estranhos”. Tomam-me por ingênua. Devo ser, talvez. Ou talvez eu seja o perigo. A verdade te liberta e te libertará sempre. Eu adoro a verdade, minha religião tem na Verdade um dos seus pilares de sustentação. Verdade, Bem e Belo.
Um dia, no ano passado (2015), resolvi que queria praticar tudo o que estava aprendendo. Tinha entrado em um programa que ensina uma nova maneira de viver a alguns anos atrás e percebia claramente que quanto mais eu me autopesquisava e me conhecia, mais eu notava o quanto estava bem longe da minha vida real.
A depressão tem dessas coisas de fazer você se perder de si mesma. Aí quando você vai melhorando demora um pouco a ter discernimento o suficiente para entender quem se é de verdade e quem se está tentando ser. Eu estava tentando com muita dedicação e empenho ser alguém que eu acreditava que eu deveria ser, mas de uma forma meio inconsciente. O autoengano era tamanho que acreditava que meus personagens tinham sumido e que na verdade era a mim mesma que estava começando a conhecer e a mostrar para os outros minha verdadeira essência. Não.
Resolvi que não tinha mais como eu continuar interpretando alguém para mim e para os outros da minha vida, como se esse alguém fosse eu mesma de fato. Ainda tenho muito a pesquisar dentro de mim para me conhecer melhor, fato. Porém agora estou mais próxima de mim do que estava no ano passado.
Defini alguns pontos importantes no meu auto-conhecimento e no que quero viver na minha vida. Um deles é aumentar a minha convivência com meu pai. Quero conhecer todo o meu lado paterno, tanto meu pai, quanto seus familiares.
Durante minha infância morei em muitas casas diferentes, em várias cidades e conheci muitas pessoas e estudei em várias escolas. Uma cidade específica foi muito importante, desde os meus quatro anos de idade, porque vivenciei muitas experiências nela e fiz amigos que tenho até hoje. Esta cidade é bem pequena, humilde, cidadezinha simples do interior do Tocantins, hoje com 15 mil habitantes, Taguatinga. Antes ficava próxima de Mimoso do Oeste na Bahia, e Barreiras. Agora fica perto de Luis Eduardo Magalhães, a cidade baiana com a maior quantidade de gaúchos residentes. Eu sou gaúcha, filha de gaúchos e meus parentes estão em sua maioria no estado do Rio Grande do Sul, que é o estado onde vim morar desde março deste ano (porém em uma cidade longe dos familiares).
Meu pai ainda mora em Taguatinga, no Tocantins e é lá o lugar onde quero estabelecer minhas raízes. E isso tem tudo a ver com o motivo que me trouxe para voluntariar no projeto do Marcos Ninguém. Quero me empoderar. Saber planejar um assentamento humano sustentável, com todas as pétalas da permacultura integradas. Quero empoderar as pessoas que moram lá, que elas possam buscar seu autossustento e de suas famílias sem agredir o meio em que vivem, que possam preservar suas riquezas naturais e melhorar sua qualidade de vida. Fomentar o ecoturismo, o turismo rural e o de aventuras integrado a um ecohostel que funciona também como escola viva de saberes, com uma farmácia viva, hortas, espirais de ervas, com uma agrofloresta e bambu. Que trabalha também como o turismo colaborativo e que incentiva toda a população a fazer as pazes com as sabedorias ancestrais em busca de uma saúde coletiva.
Esse é o primeiro dia.




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